Deixa ela ser criança

Minha filha tem dois anos. Ainda troca palavras por gestos, ainda se confunde entre perguntas e afirmações. Mas, mesmo assim, já escuto: “Ela é tão madura”, “Nossa, como é esperta para a idade”. Comentários aparentemente inocentes — e talvez sejam. Mas também são o início de uma cobrança disfarçada.

O nome disso é adultização. No Brasil, o termo vem ganhando atenção para descrever como meninas, especialmente meninas negras, são tratadas como adultas desde cedo — como se não tivessem direito ao erro, ao choro, ao exagero da infância. Mas esse fenômeno não está restrito à cor da pele nem a um único país. Para crianças filhas de imigrantes, como a minha, ele ganha contornos específicos: elas crescem sob o peso das expectativas que a sociedade projeta em seus pais.

Como mãe imigrante, vivo entre dois mundos. Em casa, tento oferecer estabilidade, espaço para erro, rotina. Mas fora, o discurso é outro: eficiência, superação, gratidão constante. É como se estivéssemos sempre em dívida com o país que nos acolheu — e nossos filhos já nascem com esse boleto.

Nas redes sociais, a pressão só aumenta. Mostramos conquistas, adaptamos nossa imagem, editamos nossas falas. Existe um impulso quase automático de provar que estamos “dando conta”. De que estamos criando crianças fortes, educadas, resilientes. Mas por que uma criança de dois anos precisa ser resiliente?

Não é coincidência que tantas mães imigrantes sintam culpa constante. Tentamos proteger, mas também nos sentimos obrigadas a preparar nossas filhas para um mundo que as exige prontas demais, cedo demais. A adultização, nesse contexto, não é apenas sobre roupas ou vocabulário. É sobre o que a sociedade espera que essas crianças representem.

Quando dizem que minha filha é madura, o elogio vem com um subtexto: ainda bem que ela não dá trabalho. Ainda bem que ela não chora alto, não exige tempo demais, não incomoda. Mas crianças existem para dar trabalho. Para testar limites. Para serem protegidas de exigências que ainda não sabem nomear.

Não quero que minha filha seja vista como promissora. Quero que ela seja vista como criança. Quero que ela possa errar, brincar, cair e fazer birra sem que isso se torne uma ameaça à imagem da “boa imigrante”.

Adultizar uma criança é apagar, aos poucos, sua liberdade de crescer no próprio tempo. E fazer isso com filhos de imigrantes é uma forma sutil de controle: se você quer ser aceito, é melhor não incomodar. Nem você, nem seus filhos.

Minha filha tem dois anos. E isso basta.

Esse é um dos temas que levo ao meu livro Parenting Unpacked que está em andamento sobre criando filhos no exterior — uma reflexão que começou justamente na conversa com a psicóloga Margery, que trabalha com famílias negras vivendo no exterior.

Jessica Gabrielzyk

Jessica Gabrielzyk é uma autora brasileira que vive na Suíça e é apaixonada por cultura, identidade e pelas verdades silenciosas da vida no exterior. Autora de Maternidade no Exterior, um guia prático e emocional para apoiar mães durante os desafios da gravidez e do parto longe de casa, ela também prepara o lançamento de Parenting Unpacked: This Is Not a Relocation Manual, que mergulha em temas como identidade, pertencimento e resiliência ao criar filhos em outro país.

Membro da SIETAR, Jessica traz um olhar global para sua escrita, combinando experiências pessoais com relatos de famílias ao redor do mundo. E, de vez em quando, se aventura pela ficção, escrevendo histórias de amor e de vida que lembram que nunca estamos tão sozinhos quanto pensamos.

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