O Peso da Espera: Morar Fora, Solidão e Recomeço

Eu não chorei quando perdi o trem. Nem quando errei, de novo, a mesma frase na farmácia e saí de lá com algo que não sabia se era certo. Também não chorei quando a mulher atrás de mim no caixa suspirou tão alto que o som parecia um tapa.

Não. Eu esperei. Sorri. Balancei a cabeça como se tivesse entendido tudo. Depois fui direto ao mercado e peguei a maior barra de chocolate com avelã. Daquelas caras. Eu merecia. Depois de um dia assim? Eu merecia alguma coisa que não me pedisse explicações.

No começo era só um prêmio. Um carinho de mim pra mim, como quem diz “você sobreviveu mais um dia”. Mas aos poucos, virou rotina. E rituais pesam. Hábitos se acumulam. Agora, o jeans que trouxe do Brasil mal passa das minhas coxas. Ele costumava ser meu uniforme: cintura alta, justo, firme. Agora, ele me desafia. Me nega.

O espelho do banheiro embaça toda manhã. Eu gosto desses segundos borrados, em que meu rosto desaparece e eu não preciso lembrar de quem me tornei.

A primeira vez que senti que estava sumindo foi num café, com colegas de trabalho. Falavam rápido, riam entre si, faziam piadas que não entendi. Tentei acompanhar, mas perdi o fio. Sorri no momento errado. E naquele instante, percebi: minha presença era só corpo. Minha voz, ausente.

Voltei pra casa arrastando os passos. Liguei para uma amiga de infância. A chamada caiu duas vezes. Quando finalmente atendeu, ouvi risos de criança ao fundo. A filha dela—quase da idade que tínhamos quando brincávamos na rua. Ela me contou da festinha, da enchente na cidade, da vizinha que morreu. E eu disse que estava tudo bem. Sorri com a voz. E, claro, comi chocolate.

Eu menti. Porque dizer a verdade dá medo. Como explicar que, mesmo rodeada de gente, eu me sinto sozinha como nunca? Que a saudade não é só de casa, mas de mim mesma?

Os dias foram ficando mais parecidos. Acordo, tento parecer funcional. Sorrio quando preciso. Falo o mínimo. Me escondo no mercado, onde posso passar despercebida. É o único lugar onde ninguém espera que eu brilhe. Só que eu sorria, passe o cartão, e saia.

Comecei a guardar os papéis de bala como se fossem pequenos troféus. Pedaços de dias vencidos.

O apartamento é pequeno, mas silencioso. Silêncio demais. Às vezes, deito no chão só pra sentir a frieza das lajotas. Ouço os vizinhos pela parede: alguém cozinha, alguém grita, alguém ri. E eu, eu apenas existo. Entre livros não lidos, plantas murchas e roupas que não uso mais.

Outro dia, tentei o jeans de novo. Quase rasgou. Sentei no chão do quarto e chorei. Não pela calça. Mas pelo que ela era: lembrança de uma versão de mim que parecia mais inteira. Mais viva.

Morar fora é isso: uma espera sem nome. Espera pelo momento de voltar. Espera por pertencimento. Espera pra sentir que você ainda é você. Só que ninguém diz “estamos te esperando”. Ninguém sente sua falta do jeito que você sente falta de si mesma.

Essa semana, resolvi fazer bolo de fubá. Achei a receita que minha amiga tinha mandado numa mensagem antiga, com uma foto da letra da mãe dela. Me emocionei só de ver. Fui ao mercado, e uma senhora simpática me ajudou a achar o fermento certo. Não falamos muito, mas ela me olhou nos olhos. Aquele olhar que reconhece o cansaço em silêncio.

Em casa, enquanto o bolo assava, o cheiro invadiu tudo. Pela primeira vez em meses, tirei os sapatos, aumentei o volume do rádio e dancei. Sozinha. Meio torta. Mas dancei. E naquele instante, voltei. Por segundos, fui a menina que comia bolo quente com manteiga e ria alto sem pedir desculpas.

Depois guardei o jeans. Não no armário, mas numa caixa. Junto com os papéis das balas, cartas que nunca enviei, e uma foto minha de antes. Não como quem desiste, mas como quem faz espaço.

Talvez eu ainda esteja esperando. Talvez a travessia demore mais do que pensei. Mas agora, eu danço enquanto espero. E isso muda tudo.

Jessica Gabrielzyk

Jessica Gabrielzyk é uma autora brasileira que vive na Suíça e é apaixonada por cultura, identidade e pelas verdades silenciosas da vida no exterior. Autora de Maternidade no Exterior, um guia prático e emocional para apoiar mães durante os desafios da gravidez e do parto longe de casa, ela também prepara o lançamento de Parenting Unpacked: This Is Not a Relocation Manual, que mergulha em temas como identidade, pertencimento e resiliência ao criar filhos em outro país.

Membro da SIETAR, Jessica traz um olhar global para sua escrita, combinando experiências pessoais com relatos de famílias ao redor do mundo. E, de vez em quando, se aventura pela ficção, escrevendo histórias de amor e de vida que lembram que nunca estamos tão sozinhos quanto pensamos.

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